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10 janeiro, 2011

Carta ao Ano Velho

Querido Ano Velho,

Começamos nossa história juntos com o pé direitíssimo, nas areias salinas do Atacama, com uma lua cheia a nos brindar sua chegada.
Mas como todos os anos pares, o pé esquerdo tremeu um pouco e desde lá, enquanto conversava com as águas do Pacífico, eu sabia que não estava pronta pra te receber tão logo.
Dito e feito, voltei pra estrear o ano na capital e no pronto-socorro. Nada sério, mesmo, só o sinal vermelho piscando a necessidade de mudar de rumos antes que o sinal vermelho viesse acompanhado de uma sirene alarmante indicando que as coisas tinham chegado a um ponto crítico.
Tomei coragem e saltei no escuro, querido ano, pra me abrigar mais de incertezas do que de certezas, e passei um tempo ainda me desintoxicando dos mares revoltos que eu havia deixado pra trás. Tive tantas dúvidas, tantos medos nas noites do seu calendário, sem enxergar tijolos amarelos pelo caminho e nem à distância.
Perdi amigos também, alguns contados por tantas separações que dividem naturalmente as águas, e pela morte também, que chega sem avisar testando nossa fé e nossa resignação.
Vi a cara feia das intrigas, mas também vi elogios inesperados e percebi que as cores da gente mudam de acordo com a lente de quem está nos observando.
Mas como as oportunidades são tantas pelo caminho de suas mais de três centenas de dias, também descobri amizades novas, redescobri amizades antigas e relembrei que estas ligações são inestimáveis e imprescindíveis para que consigamos seguir em frente. Descobri que alguns amigos são verdadeiros irmãos, que ajudam sem questionar e nos abrem as portas tanto nas alegrias quanto nas tristezas.
Ganhei também pela primeira vez em quase dez anos alguém da minha família vivendo na mesma cidade que eu, uma novidade na minha vida adulta.
No meio do caminho, quando ainda faltava um bom tempo para os fogos que fechariam seu reinado, ganhei um filho novo pra completar nossa família e vi as lágrimas de tristeza da irmã mais velha dele pela primeira festa de aniversário planejada por ela que estava prestes a acabar. O primeiro de muitos planejamentos, pleo jeito...
Viajei menos, mas me reinventei na necessidade de viver este momento. Me impus menos do que o necessário, mas soube dizer mais “nãos” do que de costume e vislumbro nas folhinhas vindouras mais respeito por mim mesma.
Você querido ano, foi um exercício de paciência fundamental para que pudesse acreditar que os frutos desta árvore adubada com espera e construção, ficarão prontos para a colheita neste ciclo que te sucederá: seu companheiro Ano Novo.

Obrigada pelas lições,

Carol

05 agosto, 2010

Do que passou

A varanda da casa continua lá, mas agora sem as cadeiras. A casa foi pintada, provavelmente reformada por dentro. Os móveis que os acompanharam por décadas e as duas novas “cadeiras do papai” também se foram. Mas de tudo que não está mais ali o que mais faz falta é a presença dos dois.
Ela, sempre inerte, às vezes esboçando um sorriso, um traço de entendimento no olhar vazio pelos anos da doença.
Ele, sempre falante, sempre presente, sempre me contando histórias de tempos em que lâmpadas elétricas ainda seriam uma revolução na iluminação pública. Tomava todos os vinhos que eu levava e insistia que eu bebesse junto, mesmo quando eu explicava ter que trabalhar logo em seguida.
Da varanda observavam o ir e vir das pessoas no mercado do outro lado da rua. Falávamos da vida, do meu trabalho, de mais um aniversário que ele achava que não viveria pra ver.
Levantava-se da mesa e se despedia dela, a quem passara a chamar de “minha florzinha” nos últimos anos, e ia tirar um cochilo com a preparação dos que esperam não acordar mais.
Ele foi antes dela. Não por vontade própria. Por ele, teria ficado um pouco mais, mas o tempo já se adiantava, e ela insistia em ficar ali, olhando o nada.
Num último gesto de uma parca lucidez, ela pronunciou o nome da primeira neta e também se foi.
Semana passada passei mais uma vez pela velha casa, mas não havia mais nada ali, só a varanda.
Saudades...