04 setembro, 2005

Birra


Assisti e continuo assistindo pasma ao desenvolvimento da situação em New Orleans após a passagem do Katrina, o furacão que maior devastação causou na história recente dos Estados Unidos.
Eu morei na Flórida. Cheguei lá um ano após o furacão Andrew e os resultados ainda eram bem visíveis na vegetação, nos edifícios e na memória das pessoas.
Um furacão é algo indescritível para aqueles que nunca o viram ou não viveram.
O dia vira noite de repente e uma tempestade das piores se forma, com ventos que saem arrastando tudo o que encontrarem pela frente. É assustador, te faz sentir pequeno, praticamente inútil diante da dimensão das forças da natureza.
É também indescritível a situação vivida pelos americanos nesses dias pós-furacão. As imagens retratam a realidade que, em qualquer outro momento, se juraria ser de um país de terceiro mundo, sem recursos, sem comando.
Mas estamos falando da nação mais poderosa do mundo, que em seu intuito de combater e comandar o planeta, acabou arrasada pela única força que não pode combater, nem atacar, e nem se defender: a natureza.
Os relatos dos jornalistas que lá se encontram dando cobertura para o evento são dos mais estapafúrdios já ouvidos na história dos desastres. As lojas, com seus sistemas eletrônicos em pane, se recusam a vender água e alimentos à população, por não ter como registrar o preço dos produtos no sistema computadorizado. Explica-se: nos Estados Unidos as taxas dos produtos não são embutidas, só são registradas nos caixas e esses valores podem variar de porcentagem dependendo do produto. Remédios não são taxados, bens de consumo variam a taxação do mais necessário ao menos. O governo em momento nenhum eximiu estes comerciantes de taxa para que os produtos pudessem sair das lojas imediatamente. Aqui, provavelmente, o mocinho que carrega comida e bebida no isopor, desde a praia até a beira da estrada, quando os congestionamentos ficam quilométricos, já teriam juntado dinheiro pra tirar a família inteira do sufoco pelo próximo mês.
Os policiais, sem recursos, entregam seus distintivos por não ter como combater os saques de uma população que passa fome há dias sem a ajuda que, como em qualquer outro desastre presenciado recentemente, já teria chegado.
Os cidadãos, sem socorro e sem alternativa, passaram a saquear, roubar, e depredar tudo o que encontravam pela frente. Como crianças birrentas que não receberam a atenção de seus pais quando estavam mais desamparadas, partiram para a violência explícita, atacando uns aos outros, violentando mulheres e crianças, roubando e ameaçando estrangeiros que lá se encontravam tão perdidos quanto eles. Mostraram seu descontentamento com as autoridades tornando uma situação que já era ruim pior ainda.
O primeiro mundo, de repente se viu terceiro mundo. Tão desamparado quanto e mais sem recursos que, pois eles desaprenderam a viver sem a tecnologia que os cerca; os médicos não conseguem trabalhar sem os melhores recursos, e por fim ficamos todos iguais perante a vida. Com o agravante de os cidadãos que lá ficaram serem os mais pobres e os mais negros em uma cultura sulista de racismo acirrado que ainda não os absorveu na sociedade americana, e agora estes indivíduos sem casa e sem amparo, sem nada a perder, se dispõem aos atos mais contrários à natureza humana, que é a solidariedade em momentos de crise.
Cinco dias se passaram sem que estes cidadãos fossem socorridos e os governantes, representados em coletiva de imprensa pela Secretária de Estado Condoleeza Rice, não recusaram, mas também ainda não aceitaram nenhuma ajuda da que foi oferecida por sessenta países, mais as Nações Unidas. O que me leva a pensar que a birra passa de pai para filho. Em um momento de crise, o orgulho americano faz o ruim ficar pior ainda.

2 comentários:

Anônimo disse...

Querida Carol
É um privilégio ser convidada para tomar um café à distância com você. Acho que você deveria muito seriamente pensar em ser jornalista ou cronista já que consegue colocar de maneira tão clara o que sinto, mas que eu não conseguiria colocar em palavras. Gostei dos comentários sobre os EUA. É nesses momentos que as pessoas têm que levatar os tapetes e que o pó e a sujeira lá escondidos há tempos aparece. E aí os americanos assistem surpresissimos como ele são tão iguais a outros milhares quaisquer nos momentos de crise e de luta pela sobrevivência. Deveriam pensar à respeito. Seria um bom tema para terapia em grupo nacional.
Beijos,
Marina

Anônimo disse...

.. assim é que é.... e la nave va assimismo..