21 novembro, 2007

As vacas

Andei faxinando meus arquivos e achei esta crônica perdida por lá. Escrevi há uns quatro anos, mas pelo andar da carruagem, parece que foi ontem.


AS VACAS


Acabei de chegar em casa e tinham quatro vacas descendo o quarteirão. Desciam como se aquele território lhes pertencesse por direito. Desciam como se aquilo fosse absolutamente natural. Quatro vacas passeando pelo asfalto gélido de uma noite de inverno.
Parei o carro, desci e fui até a esquina para ter certeza de que eu não estava tendo uma alucinação.
E por que eu achei aquilo tão estranho? Afinal havia um fator contribuinte: eu morava na saída da cidade, onde várias chácaras e fazendas se empilhavam nas curvas da Serra da Paulista.
Mas ainda assim vários pensamentos me ocorreram. Imaginei as vacas caminhando pela estrada da serra, em direção à cidade, para um passeio corriqueiro, à luz da lua cheia. Imaginei as impressões das vacas com relação àquela paisagem tão entrevada de casas e asfalto, tão diferentes de seu habitat natural. Com carros velozes a fazer barulho e televisores em alto volume anunciando a novela das oito que já ia começar.
Provavelmente, o que as vacas despertaram em mim foi a necessidade de ver além do óbvio. De ver além do que nos parece normal quando não deveria ser, enquanto o que poderia ser normal nos salta aos olhos.
Afinal, é fácil ver quatro vacas passeando pelo asfalto, desacompanhadas no meio da noite. Porém temos gente morrendo de fome à nossa volta, crianças sem educação, pessoas roubando e enganando debaixo de nosso nariz, mas isso parece normal. E se não parece, estamos fazendo o possível para parecer.
A repetida mostra de violência que a televisão dá seu aval ao mostrar, faz com que cenas que deveriam ser para sempre desconcertantes se tornem óbvias e rotineiras.
E as vacas, tão alheias a esta nova paisagem que nos rodeia, se tornam a grande atração de quem tem cabeças rolando todo dia nos noticiários.

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